Duas faces das Artes Plásticas nas ruas de Manaus

por Rosiel Mendonça

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Começou a chover forte assim que eu entrei na Avenida Pedro Teixeira, vindo da Djalma Batista. Era uma segunda-feira, véspera de feriado nacional, e eu estava a caminho da praça de alimentação do Conjunto D. Pedro, mais conhecida como Praça do Dom Pedro, na zona centro-oeste de Manaus. Estava ali para encontrar um artista de rua.

Assim que cheguei, alguns funcionários das diversas lanchonetes e restaurantes da praça disseram que ele havia sido visto por ali não fazia muito tempo. Uma garçonete se ofereceu para me ajudar a procurá-lo. Ela saiu perguntando dos outros funcionários: “Viu o Palhaço”? Perguntou de um, de outro, até que contornamos os dois grandes blocos comerciais que ajudam a compor o cenário da Praça Dom Pedro. Na lateral de um dos blocos, longe dos olhos dos transeuntes, mas ao abrigo da chuva, estava o hippie Cleudison, mais conhecido como Palhaço.

Ele estava sentado no chão, sobre um pedaço retangular de lona amarela, e os pés descalços. Me apresentei e logo ele topou conversar. Quando insinuei que também ia sentar no chão para ficar mais próximo dele e poder fazer o registro no gravador, Cleudison me interrompeu dizendo: “Não senta aí não, meu príncipe!”. Revirou a mochila e estendeu uma camisa para que eu sentasse.

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“Ali na calçada do lado da Caixa, próximo ao Teatro Amazonas, tem um cara que faz desenhos”. Essa foi a resposta que ouvi de pelo menos três pessoas no centro de Manaus quando perguntei se conheciam algum artista plástico que trabalha na rua. De fato, já havia visto um artista fazendo e expondo desenhos a lápis na esquina da Avenida Eduardo Ribeiro com a Rua José Clemente. Numa manhã de sexta-feira, resolvi conferir. Passei pelo ponto indicado e ainda não havia ninguém.

Perguntei para uma senhora que trabalha em um desses lanches de beira de calçada, muito comuns em Manaus, se ela conhecia um “pessoal” que fazia desenhos e deveria estar trabalhando próximo ao quiosque dela. Ela me respondeu dizendo que não se tratava de um pessoal e sim de um rapaz, que costumava aparecer por ali apenas a partir das 10h e ficava até às 17h. Como ainda eram 9h, fui dar uma volta no Largo de São Sebastião.

Pouco depois das 10h, retornei ao mesmo ponto e encontrei Amós Lopes Pereira, de regata branca e boné na cabeça. Aparentemente alheio à movimentação típica de uma manhã no Centro, o desenhista estava com fones no ouvido, sentado em uma cadeirinha dessas de praia, com o rosto voltado para uma prancheta grande que trazia no colo. Segurando uma foto na mão esquerda e o lápis em riste na direita, Amós traçava os detalhes de um cabelo de criança. O desenho parecia estar num estágio bem avançado.

Ele contou que há pelo menos dez anos a esquina da Eduardo Ribeiro com a José Clemente é o seu endereço profissional, de segunda a sábado, das 10h às 17h, confirmando, assim, a informação preliminar que eu havia obtido com a senhora do lanche. “Se tiver algum trabalho pra entregar cedo, eu chego cedo”, acrescentou Amós, que mora ali mesmo no Centro.

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O manauara Cleudison Palhaço tem 35 anos, mas aparenta ser mais velho por conta de algumas rugas salientes na testa e outras duas, profundas, que marcam o contorno da boca. Suas feições agudas denotavam o cansaço de quem havia chegado ao fim de mais um dia de trabalho debaixo do sol. Esfregando os dedos escurecidos de tinta seca no nariz, ele contou que trabalha há dois anos com pinturas em cerâmica.

Utilizando essencialmente os dedos, um palito, algodão e bisnagas de tinta óleo de várias cores, Cleudison dá vida a paisagens naturais que colorem a superfície esmaltada de pedaços quadrados de cerâmica branca. Como retoque final, ele aplica na peça um spray que ajuda a fixar e impermeabilizar a pintura.

Segundo Cleudison, esse é um trabalho muito prático, porque pode ser feito tanto em cerâmica, quanto em tela, geladeira, fogão, freezer, etc. “Essa é uma técnica que eu descobri na minha casa. Eu comecei a pegar tintas e a fazer pra mim mesmo. Eu queria saber como era a pintura, a arte feita na mão. Aí eu comecei a fazer e descobri que tinha talento. Esse talento nasceu de mim mesmo, ninguém me ensinou. Também andei por São Paulo e conheci muitos camaradas que faziam esse trabalho e acho que adquiri um pouco do talento deles. Aí fui adquirindo técnica, conhecendo outras pessoas, fazendo amizade”, conta o artista, que, além de São Paulo, já fez andanças pelo Uruguai e Paraguai.

Mas Cleudison não é um artista de uma arte só. Além das pinturas em cerâmica, ele faz molduras de bambu, pinturas em telas de palete de 30×30 cm ou 50×50 cm, malabarismo nos sinais, e, de forma mais esporádica, esculturas em gesso. Em um dia de trabalho, ele consegue faturar de R$ 50 a R$ 100 só com a cerâmica, e de R$ 60 a R$ 70 com o malabarismo.

Em uma pintura que leva cerca de dez minutos para ficar pronta, ele ganha de R$ 20 a R$ 50, conforme o tamanho da cerâmica. “Tiro o meu sustento da arte. Tem dias que trabalho só na cerâmica ou só nos malabares. Quando não tem material, vou pros malabares”, explicou. Segundo Cleudison, é comum os artesãos também trabalharem com malabares, pois muitos deles vêm de alguma experiência no circo. “Eu trabalhei seis meses no circo do Beto Carrero em São José do Rio Preto e adquiri um bom conhecimento”.

Com o dinheiro que consegue nas ruas, Cleudison Palhaço faz suas três refeições diárias, compra roupas e matéria-prima. “Às vezes quando eu tô na mesa, mostrando os trabalhos, as pessoas me oferecem uma colaboração, que pode ser dinheiro ou alimento, aí eu aceito e como numa boa”, contou. A Praça do Dom Pedro, a Avenida Djalma Batista, além de feiras e lanches da cidade são os pontos preferidos de Cleudison para oferecer a sua arte. “Eu vou para outros lugares, onde tem movimento, onde têm pessoas que colaboram com meu trabalho, e que também prestigiam”, acrescentou.

Quando perguntei se o estado de espírito influencia nas pinturas que ele faz, Cleudison respondeu, com a fala mansa, ciente da relação que existe entre criador e criatura: “Isso é uma coisa que vem de dentro da gente mesmo. É uma coisa emocional, que vem de dentro do nosso eu”.

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Para Amós Pinheiro, a arte do desenho é um dom que ele cultiva desde os nove anos de idade. “Na sala de aula eu costumava desenhar os colegas”, relembrou. “É o tipo de coisa que você faz com vontade, não tem preguiça, não tem cansaço. É o que eu sei fazer, é o que eu gosto de fazer”.

Paraense nascido em Belém, Amós abraçou o desenho como profissão aos dezesseis anos, quando veio para Manaus para trabalhar. Hoje, aos 30 anos, o artista costuma fazer com mais frequência desenhos de rostos, mas também trabalha com paisagens, caricaturas, histórias em quadrinho e desenhos para tatuagem. Às vezes é contratado para fazer caricaturas em casamentos e aniversários. “Atendo não só quem passa por aqui. Faço desde atividades escolares para crianças, até trabalhos universitários e projetos para empresários e tatuadores”, contou Amós, que também costuma ir a trabalho a Belém, Fortaleza e outras cidades do litoral nordestino.

Sentado em sua cadeirinha encostada na parede, Amós explicou que trabalha com desenhos em três tamanhos: 30×40 cm (R$ 40), 42×59,4 cm (R$ 80) e 100×70 cm (R$ 150). O menor, leva no máximo uma hora para ficar pronto. Seus materiais de trabalho são borracha, lápis 2B para fazer os rascunhos e 6B para os traços mais fortes e acabamentos, além de régua e um pincel especial para fazer o sombreamento. Isso tudo ele guarda numa espécie de porta-trecos acoplado ao braço direito da cadeira.

Em uma semana, consegue ganhar entre R$ 600 e R$ 700. Sendo essa a sua única fonte de renda, ele paga o aluguel da sua casa na Rua Ferreira Pena, suas despesas mensais e ainda consegue manter uma casa na cidade natal. “O preço é justo, porque pelo tempo em que tô aqui ninguém nunca reclamou, além de ser um trabalho bem feito, de excelente qualidade”, garantiu. Tampouco se vê praticando outro ofício: “Eu só trabalho com isso mesmo, não tenho tempo pra trabalhar com outra coisa”.

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“Não gosto de andar no meio da sociedade expondo uma aparência de mendigo, mas de uma pessoa civilizada”, afirmou Cleudison, que nessa noite vestia um casaco com estampa militar, sobreposto a uma camisa de botão florida, e uma bermuda bege toda manchada, que ele usa para limpar os dedos enquanto está pintando.

Apesar de se preocupar com a própria aparência, ele afirmou já ter sido vítima de preconceito e discriminação pelo estilo de vida que leva. Cleudison se considera hippie e mantém um autêntico cabelo rastafári (“cabeça da paz”), ainda que seus dreadlocks fiquem escondidos por baixo de uma touca de lã nas cores da bandeira da Etiópia. Na tradição religiosa Rasta, em que é proibido cortar e pentear os cabelos, cada dread está ligado espiritualmente com alguma parte do corpo. “Eu era monge, mas deixei de ser monge pra entrar nessa carreira de novo”, relembrou.

Na rua, Cleudison já teve problemas principalmente por conta de espaço para expor seu trabalho. “Já aconteceu de as pessoas comunicarem à polícia e ela vir pra expulsar a gente, por causa de outras pessoas que fazem baderna e que acabam queimando o lugar onde a gente trabalha. A Praça da Polícia (Heliodoro Balbi) era um lugar onde a gente podia expor nosso trabalho e hoje não podemos por causa da violência gerada por pessoas que são do nosso próprio grupo. Pessoas que pregam paz e amor, mas não são paz nem amor, são violentos, são pessoas que antes de entrarem nesse movimento viviam no mundo da marginalidade ou eram presidiários”, relatou, com uma ponta de indignação na voz.

Cleudison nunca sofreu agressão ou teve os seus materiais apreendidos pela PM, mas já foi vítima de roubo no centro da cidade e presenciou inúmeros casos de brigas dentro do seu próprio meio, entre artistas que dividiam o mesmo espaço. “Isso ajuda a queimar os artesãos, que acabam ficando com fama de violentos”.

Talvez por isso ele tenha a convicção de que a polícia deva, sim, interferir no uso e ocupação dos espaços públicos. “É questão de segurança, né. Se não tem segurança vai chegar um cara armado que pode roubar a mim e as pessoas que estão procurando o artesanato. Então seria chato uma pessoa estar comprando um artesanato, tá abrindo a carteira e ser assaltada… Aí fica chato porque vão pensar que o artesão tá ‘jogando’ com aquela pessoa que tá furtando, enquanto que o artesão não tá contribuindo com isso. Esse que é o problema”.

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Assim como Cleudison Palhaço, Amós não possui muita história para contar de desentendimentos pessoais com o poder público. Mas há um caso, ocorrido nos anos iniciais da sua carreira, quando o órgão responsável por fiscalizar atividades comerciais praticadas na rua resolveu testar a paciência de Amós. “Tentaram uma vez me tirar daqui, mas não conseguiram. Levaram as minhas coisas, mas eu fui lá, peguei meu material e coloquei de novo”, contou em tom jocoso. Da parte dos comerciantes do entorno também nunca houve empecilho que prejudicasse a sua atividade de desenhista. “Afinal, dois homens não brigam se um não quiser”, concluiu, recorrendo à sabedoria popular.

Avesso a desentendimentos, Amós se sente realizado com o que faz: “Se eu agrado às pessoas, eu me sinto agradado também”. Segundo ele, quem mais procura por seu trabalho é o público feminino, talvez por uma questão de vaidade. “Se você chegar à minha casa vai ver que não tem quadro, não tem pintura nenhuma. Minha namorada que tá sempre querendo um desenho dela. Já fiz dois, mas ela sempre quer outro”, confessou.

Atrás de si, pregadas numa tela de madeira, havia quatro amostras do trabalho de Amós. Quatro desenhos de bustos femininos. Um deles, inclusive, mostrava uma Vera Fischer sorrindo timidamente.

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Cleudison ainda alimenta a vontade de se juntar a outros artistas para reivindicar espaços fixos de exposição em Manaus, lugares onde seus trabalhos possam ser expostos e articulados. Mas falta o capital – social e financeiro. Quando perguntei se ele achava que a arte de rua deveria permanecer na rua, Cleudison me respondeu dizendo que a oportunidade de expor numa galeria não seria má idéia. “Seria como lá em São Paulo, onde muitos empresários vão a esses lugares contemplar os trabalhos e criar iniciativas de divulgação. Assim, as pessoas iam aprender, através do nosso trabalho, que nós somos gente, não somos animais, somos seres humanos”. É o desejo de, quem sabe, ser descoberto e se livrar de uma vez por todas dos rótulos de vândalo e marginal.

Para Cleudison, que demonstrou ser uma pessoa bastante espiritualizada, a sua arte nada mais é que uma forma de se relacionar com a natureza, além de ser uma maneira de enfrentar a realidade e superar-se cotidianamente. “Arte pra mim é vida, é amor, é uma coisa que vem inspirada dentro do eu. Quando você vai criar alguma coisa, você tem que ter inspiração. Quando você olha pra alguma árvore ou algum pássaro, ele tá passando pra ti um pouco do espírito dele que vem através da natureza e dos lugares por onde ele já passou”, explicou.

Apesar de cultivar alguns contatos e amizades com outros artistas de rua, Cleudison anda sozinho. Hoje, mais do que seu palco e sua vitrine, a rua é também a sua casa. “Eu tô sem moradia, agora eu tô andarilho”. Intencionalmente ou não, a colocação do verbo ESTAR no lugar do SER, revela o desejo íntimo que Cleudison alimenta de um dia ter uma vida diferente: “O meu futuro é um dia conseguir comprar um terreno e montar uma comunidade alternativa”. Enquanto esse dia não chega, Cleudison Palhaço planeja ficar em Manaus. Por enquanto.

Solte o verbo