Músicos de rua, uma nova paisagem sonora

por Ítala Souza

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Na rua, barracas com produtos variados. Nas calçadas, artesãos montam brincos, desenhistas abordam pessoas, chamando-as para posar. Eram dez horas da manhã de um domingo na famosa Feira da Eduardo Ribeiro, que costuma estar sempre cheia: famílias ansiosas esperam por seus pedidos de café, enquanto turistas observam detalhadamente o lugar, esforçando-se ao máximo para compreender um pouco da nossa cultura.

Caminhando até o final da feira, próximo à Praça do Largo São Sebastião, é possível encontrar uma figura típica da feira: um senhor com feições indígenas tocando em flauta zampona a música Catedral – é Luis Oliveira, 43, que prefere ser chamado pelo seu nome artístico Lucho.

Ao tocar, despertava nos transeuntes reações variadas. Muitos pareciam indiferentes ao trabalho dele, como se fossem surdos ou cegos; outros eram fisgados pelo ritmo diferente de música andina e, como estátuas, contemplavam a apresentação. Quem já conhecia o trabalho do músico procurava no tabuleiro de CDs, com a ajuda de Andréa e Luis, filhos do artista, o próximo CD que desejava adquirir. Este era o caso da funcionária pública Edilene Queiroz, 34, que além de colecionar as obras de Lucho acredita na criatividade desse tipo de trabalho independente. “O desemprego está muito grande e as pessoas procuram uma alternativa para sobreviver. Eu não sou contra eles chegarem aqui no Brasil. A gente não vai para os Estados Unidos atrás de emprego e melhorar de vida? Eu acho que as pessoas são criativas, têm que procurar sobreviver e sustentar a família”, diz Edilene.

Lucho é músico instrumental e trabalha a 15 anos de forma independente. Sua ligação com a música começou ainda na adolescência, quando aos 14 anos entrou para o grupo musical de sua escola em Arequipa, cidade peruana onde nasceu.  Após se formar, prestou vestibular para a faculdade de direito, mas como não foi aprovado entrou para o exército. Ao sair, decidiu trabalhar com o que mais gostava: a música.

“Saí com uma agrupação de profissionais, chamada Kallma, que significa ramo de árvore, um projeto voltado para assistir crianças carentes. Neste grupo havia professores de teatro, músicos, dançarinos, professor de história e tinha dois empresários, patrocinadores do Kallma”, relembra Lucho.  Em contato com o conhecimento dessas pessoas Lucho, apesar de ser o mais novo da turma, aprendeu muito para futuramente vir a trabalhar de forma independente. A intenção do grupo Kallma era partir para os Estados Unidos: “Nós queríamos chegar até lá”, mas a falta de patrocínio fez o grupo continuar apenas no norte do Peru. Lucho se afastou do grupo, decidindo viajar o mundo e trabalhar de maneira individual.

“Fiz um grupo de amigos peruanos e vim para Manaus. Eu vim em busca do Eldorado, mas não encontrei. Eu jamais havia pensado em vir para o Brasil, meu destino era Europa ou Estados Unidos, mas nos informaram que havia uma ilha aqui no Amazonas onde tinha muito turista, onde conseguiríamos vender CDs e este era o passo inicial para irmos aos Estados Unidos, coisa que comprovamos ser difícil. Acredito que muitos grupos, os primeiros que vieram, conseguiram sucesso”, diz Lucho.  A “ilha” que Lucho se referia era Belém, bem longe de Manaus. O músico chegou a visitar a cidade, descobriu que não era uma ilha e sentiu a dificuldade de juntar dinheiro por causa das vendas fracas dos seus produtos. Decidiu vir para Manaus e dar continuidade a carreira. Com o tempo, conseguiu formar um público admirador de sua arte: fregueses fiéis, pessoas interessadas em aprender a tocar flautas andinas, os próprios turistas que se encantam com a música tocada nas ruas. Todos compram seus instrumentos e CDs.

Lucho está morando em Manaus há 20 anos e conta como é o seu dia-a-dia: “Aos domingos trabalho de 8h a 13h30 na feirinha, vendendo CDs e instrumentos musicais. Fabrico flautas, faço um show para incentivar o pessoal a comprar e nos dias de semana vendo CD na Praça do Relógio.”

Para gravar esses CDs, Lucho viaja para São Paulo em companhia de outros colegas de profissão. Nestas viagens, o artista encontrou várias dificuldades, principalmente quando começou sua carreira, pois para gravar um CD na década de 90 era preciso dispor de um valor de quase 5 mil reais. “Hoje em dia, só é preciso 800 reais. No começo da carreira foi difícil, depois o preço colaborou para nossa jornada. Todos voltam e vendem seus produtos nas suas cidades”, diz o instrumentista.

O dinheiro que o artista recebe das vendas, segundo ele, não é o preço justo de sua produção; atualmente o valor dos produtos já está defasado: “Há dez anos, o trabalho de vender disco e tocar era bom, porque você vendia muito, mas hoje em dia não. Você tem que dar aulas de música, fazer instrumentos e shows para poder complementar as rendas. Meus CDs custam 10 reais; se eu cobro 15 ou 20 reais, ninguém vai comprar. Antes, eu vendia a 15 reais e, em vez de aumentar, fui baixando o preço. Não podemos aumentar porque tem a concorrência, a pirataria.”

As flautas zamponas, instrumento típico dos Andes e da Bolívia, do lago Titicaca, variam de preço dependendo do grau de complexidade para criá-las. Elas são feitas com bambu que o artista consegue em suas viagens para o interior do Amazonas. Avaliando as horas que Lucho trabalha, não é difícil entender sua aflição, pois além de músico, também é um artesão: a montagem de uma flauta leva duas horas para ser feita e é vendida a 25 reais, mas tem flauta que leva dois dias para ser concluída. Então o preço aumenta, mesmo assim ele entende que não é o preço adequado.

Quando questionado sobre seu trabalho na rua, o músico se vê como qualquer outro artista, independente de classificações. “Eu fico me perguntando: Qual a diferença de hoje estar tocando num evento ou na avenida principal? Hoje posso estar aqui e amanhã não, sempre trabalhei aqui na rua. Eu acho que não se pode classificar o artista. Tem artista que se fez na rua e ganha dinheiro na rua; têm outros que estão na rua divulgando o trabalho. Então acredito que não se pode dividir a arte, como se fosse de rua e de palco. Se o seu trabalho artístico é bom, você está lá, aqui e em todo lugar.”

Perto de onde Lucho trabalha, mas em dias diferentes – segunda, quinta e sábado -, no horário de 14h às 17h, a Praça do Relógio também se transforma no palco de outra artista:  Karoline Silveira, 14, estudante e cantora de música gospel.

Apesar de não existirem muitas árvores no centro da cidade, é à sombra de um benjaminzeiro na Praça do Relógio que o público de Karoline se ajeita para assistir ao seu show. Alguns da platéia já são conhecidos de Karoline, que esperam ansiosos por ela. Nos outros dias da semana, ela estuda violão e informática.

Quem passa por esse local, já deve ter se deparado com uma moça magra, de cabelo negro, bem liso, cantando com graves doces e agudos marcantes.  Karol, como gosta de ser chamada é uma adolescente que, apesar de aparentar a idade, quando conversa, dá a impressão de ser alguém com mais de vinte anos.

“Eu ia para igreja, via o pessoal cantando; nasci em berço evangélico e isso começou a me incentivar”, conta sorrindo e mostrando seu piercing no dente.

A cantora, que é da Assembléia de Deus, cursa a oitava série do ensino fundamental pela manhã. Ao chegar da escola, almoça, descansa e minutos depois já está pronta para o “trabalho”. Com vestido social, um belo penteado onde se destaca a franja, sapatos de salto alto, lá segue ela acompanhada da mãe, Dona Ana, e do membro de sua congregação, “irmão Celso”. Eles apanham o coletivo do Mundo Novo, bairro onde moram, e chegam à Praça da Matriz. Na bagagem, microfone, DVD e seus CDS se juntam à caixa de som para iniciar a performance na Praça do Relógio. Antes de começar a apresentação, os três se concentram, oram e pedem a Deus que corra tudo bem em mais um dia de trabalho.

Karol revela que começou a cantar aos 4 anos de idade na cidade de Vilhena, em Rondônia, onde nasceu. Já aos seis anos gravou seu primeiro CD e hoje são três, além de uma coletânea, onde constam algumas músicas de sua própria autoria.

“Eu sou cantora de rua. Estou aqui em Manaus há um ano e pouco e é muito bom falar de Deus para essas pessoas aqui na Praça, muita gente passa precisando.”

Além de cantar na rua, ela se apresenta em igrejas, casamentos e outros eventos para tirar uma renda extra. Quando está na Praça, consegue vender de15 a20 CDs, dinheiro que é investido para mais produções de CDs e a conservação dos instrumentos.

A vida de Karol se diferencia dos outros adolescentes pela perseverança em acreditar nos outros e em si mesma, mas ela ressalta que apesar de gostar do seu trabalho às vezes desanima frente às dificuldades financeiras e pessoais. Não prolongando muito o assunto, a artista conta que recentemente enfrentou a separação de seus pais. “Era difícil me concentrar e cantar, mas eu consegui. É muito bom saber que a gente tá ajudando de alguma forma as pessoas através da palavra do Senhor, que traz paz espiritual também para mim.”

Com o rosto pensativo, Karol relembra a história de uma mulher que encontrou um dia na Praça. “Ela tinha vindo de Roraima, estava recém separada e decidida a recomeçar sua vida em Manaus com o apoio de sua família, mas isso não aconteceu. A família não a ajudou, ela teve que morar num hotel do centro e quando seu dinheiro já estava acabando começou a se prostituir aqui mesmo na Praça, pra se sustentar. Ela veio e sentou no banco quando eu estava cantando a música chamada ‘O Vencedor’. Ela ficou fascinada e envolvida com a mensagem da música. Aí minha mãe foi conversar com ela, que desabafou contando sua história. Nós a ajudamos dando dinheiro para pagar o hotel. Passou a vir todos os dias em que eu me apresento. Então, um certo dia, veio acompanhada do marido e estava feliz. Fiquei alegre por ter ajudado de alguma maneira.”

A artista conta que os “moradores da praça”, no início, pediam para que ela fosse embora e parasse de se apresentar. Hoje eles sentam nos bancos e cantam os hinos “na ponta da língua”. Ela acredita que seu trabalho ajuda as pessoas a superar os problemas, pois já virou rotina dia de segunda e quinta-feira as pessoas saírem dos seus trabalhos e esquecer suas perturbações do dia-a-dia buscando alívio espiritual em cada composição.

Entre as 30 pessoas que assistiam Karol cantar estava Ovídio Pereira, 58, comerciante que vem ao centro toda semana pela parte da tarde ouvir os evangelistas que estão na Praça: “Eu venho sempre aqui, também ouço as palavras de um outro rapaz que se apresenta aqui perto e gosto da Karol. Eu não sou evangélico, não é religião que salva alguém, cada um pensa diferente. Só acredito muito em Deus, eu me sinto bem vendo o trabalho deles”, diz Ovídio, ao mesmo tempo em que filma pelo celular a apresentação da cantora. Quando a apresentação acabou, seu Ovídio fez questão de pegar a dedicatória da cantora no CD que havia comprado.

Perguntada sobre seus planos para o futuro, Karol diz que sonha em conciliar a carreira de cantora com a de médica: “A gente tem que conciliar as duas coisas. Eu estou estudando e no futuro pretendo me formar em Medicina para ser médica-cirurgiã plástica, mas eu pretendo também seguir a carreira de cantora e levar a palavra de Deus através da música gospel, claro!”

Mesmo com estilos diferentes, Lucho e Karol demonstram que a arte é uma só, onde a rua se configura como espaço democrático para a livre manifestação artística. Na companhia de familiares e encarando a música como profissão, desde cedo, a história de ambos se conecta, sendo construída em palco urbano. Eles dão um novo aspecto a cidade, proporcionando aos nossos ouvidos uma paisagem sonora diferente da qual estamos acostumados:  buzinas de carros, o bater de palmas de vendedores, o barulho dos transeuntes. Através de suas músicas, andina e gospel, esses artistas nos fazem entender que dentro de nossos mundos existem outros e, para conhecê-los, basta ouvir e olhar a cidade com mais atenção.

5 Respostas para “Músicos de rua, uma nova paisagem sonora

  1. Paulo Roberto Olimpio

    muito bom

  2. Sou apaixonada pelo som da flauta peruana. Tenho o CD Nueva Expresion – gospel collection – Harpa cristã. Adoraria adquirir uma flauta e aprender a tocar. Em São Paulo, onde posso encontrar o produto?

  3. como faso pra adiquirir o cd
    estou a um tempam procuramdo
    pra dar de pressente po meu pai
    pois ele gosta muito

  4. Itala, ta show a matéria

  5. Ismael Farias

    Parabéns, Ítala! Gostei muito da matéria.

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