A arte de equilibrar a vida na ponta da faca

por Fabiana Reis

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Hoje em dia, é necessário fazer malabarismo para suportar a pressão dos dias frenéticos. Família, trabalho, lazer são como bolinhas de vidro lançadas ao ar, cada uma delas com sua importância. Equilíbrio é fundamental para não deixá-las cair. A fluidez do tempo nos dá a impressão de que tudo está cada vez mais rápido, exceto o trânsito que de maneira lenta parece nos castigar pela escolha de nos locomover.

Na contramão dessa correria, encontro Mauri jogando malabares em um semáforo das avenidas de Manaus. Mauri é argentino, tem 30 anos e há mais de dez é artista de rua. Ele faz da arte urbana um autêntico modo de vida. Saiu de casa, na Patagônia, aos 18 anos. Conta que um dia acordou meio chateado com a rotina, com todo dia a mesma coisa. Pegou uma mochila, três bolinhas, um saco para dormir, algum trocado e foi embora. De carona com um caminhoneiro chegou ao Chile. Quando saiu de casa ainda não era artista. Morou um ano em uma casa cultural, onde aprendeu muito e diz que segue aprendendo, “não precisava de muita coisa material para poder viver e ser feliz”, diz.

A frase de Mauri me ensurdece. Embora ele fale de maneira mansa e suave um portunhol que aprendeu viajando, “não precisava de muita coisa material para poder viver e ser feliz” soa aos meus ouvidos como um bumbo. Num mundo em que pra onde quer que olhemos há um sinal nos dizendo “consuma”, encontrar alguém que, com um sorriso, responde “não, obrigado” é um fato surpreendente.

Num semáforo da Avenida Mário Ypiranga, Mauri estava agora jogando diábolo, mas ele também faz palhaço, magia e outras artes do circo. “Sou artista da rua, trabalho na rua com arte circense.” Ele conta que já trabalhou em circo e explica do gosto de preparar-se para uma apresentação. Mas ressalta: no circo tem patrão. “Não gosto que ninguém venha falar pra mim o que tenho que fazer.”

Este ano Mauri já esteve no Peru, na Bolívia, no Brasil e na Venezuela. Há duas semanas em Manaus, conta que passou pelo Acre e por Roraima. De Boa Vista para Manaus, fez sua primeira viagem de avião. Viajar parece ser a grande paixão de Mauri. Viajava de carona, de bicicleta, mas hoje em dia ele programa um pouco mais suas viagens. Na bagagem, um monociclo, uma bicicleta pequena, seus malabares e outros acessórios de arte. “Achei uma forma legal para meu viver e poder viajar. Com minha arte conheci toda a América do Sul”, afirma. A bagagem que carregamos diz muito sobre nós e a de Mauri é invisivelmente imensa.

Aqueles que escolhem fazer da rua o seu palco, nem sempre são vistos como artistas pelos que passam. “Vai trabalhar, vagabundo!” é frase comum de ser ouvida, explica Diana, que faz malabarismo com facas em semáforos. Diana acredita que a cultura de rua ainda não é muito aceita como arte, pois algumas pessoas vêem esses artistas como pedintes e não como alguém que expressa a arte.

Já dizia o pensador francês Michel de Certeau que toda atividade humana pode ser cultura, mas ela não o é necessariamente, ou não é forçosamente reconhecida como tal, pois, “para que haja cultura, não basta ser autor das práticas sociais; é preciso que essas práticas sociais tenham significado para aquele que as realiza”.

E assim é para Diana: arte é vida, é essência, é delicadeza. A amazonense de 31 anos viajava fazendo artesanato. Em Bogotá, na Colômbia, conheceu várias pessoas que jogavam malabares e acabou aprendendo. Nos oito anos que passou fora do Brasil, esteve na Colômbia, no Peru, no Equador, na Venezuela e na Guiana Inglesa. “O que me fez viajar e conhecer muitos lugares foi a arte, é daí que tiro o dinheiro para comer, pagar hotel, locomoção”, diz.

Uma das características dos artistas de rua é o gosto por viajar e a busca pelo desconhecido. A vivência compartilhada nas casas de cultura e nas ruas certamente promove as mais diversas experiências humanas. “Gosto de viajar, nunca aprendi tanto como viajante!”, enfatiza o argentino Mauri. Enquanto a maioria das pessoas busca se fixar e vê a rua como um lugar de passagem, os artistas de rua abrem mão do conforto e segurança da “casa” e constroem sua vida na “rua”.

Além dos aplausos, na rua também estão sujeitos à violência. Isaac Seguro, um jovem venezuelano que joga swing, traz nos braços a marca de uma agressão. Ele conta que, um dia, enquanto fazia sua apresentação com fogo, um homem atirou combustível em seu corpo. Hoje, já recuperado mas ainda com faixas nos braços, continua brincando com fogo. Quando pergunto a ele o que é arte, responde convicto e rapidamente “arte é vida”.

Para Diana, a rua é o local de seu “emprego”. Numa mistura com o espanhol, ela chama o semáforo de “cacheiro” eletrônico. “Dá para faturar de R$ 20,00 a R$ 100,00 numa hora”. Além de fazer o que gosta, como ela ressalta, se autogestiona. No Equador, onde morou três anos, trabalhou em circo. Foi lá que nasceu um de seus filhos. Ela tem um menino de 11 anos e uma menina de seis. Diana é mãe e sabe das implicações da maternidade, de como os pais planejam ou sonham o futuro dos filhos. Mas à pergunta sobre o que deseja para sua filha, ela responde com firmeza: “Que ela seja o que quiser e não o que outros querem que ela seja.” Diana complementa, com ar de sabedoria, que nem sempre os filhos são o que os pais querem. Quando fala de sua mãe, diz que pelo fato da arte de rua ser marginalizada a mãe a entende, “mas não compreende a minha escolha”.

Sobre o público que, do interior de seus carros, assiste ao show do semáforo, Diana fala do ponto mágico do malabarismo. “Enquanto a platéia estressada pensa nas contas a pagar e nas necessidades de consumo, imagino que, ao me verem jogando facas para o alto, ela seja capaz de refletir sobre o seu cotidiano e até de esboçar um sorriso”. Pergunto, então, o que ela faz quando está estressada. “Faço malabares.” Uma das coisas que lhe causa estresse é a cobrança, ainda, de parte da família para que tenha um emprego “normal”.

Outro ponto a considerar sobre a plateia é sua diversidade financeira, étnica, etária. Diana fala que nem todos podem ir ao Cirque du Soleil, então, se passa uma senhora que nunca foi a um circo e vê sua arte, acontece o intercambio que só ela, a arte, é capaz de promover.

Com o visual diferente do que condiciona o sistema, com tatuagens nos braços e nas pernas e o cabelo raspado nas laterais, Diana diz ter tido uma coragem que muita gente não tem – a de ir em busca de seu sonho. Afirma isso com a autoridade de quem trancou matrícula em duas faculdades aos 19 anos e decidiu viajar. Para ela, são tantas as cobranças sociais sobre as pessoas que elas acabam se reprimindo e perdendo suas essências.

Na conversa com Isaac Seguro, vejo em seus olhos a mesma paixão que o fogo de seus malabares. Há apenas três meses fora de casa e a alguns dias de completar 20 anos, ele parece vislumbrado com a distância de Puerto Ordaz, na Venezuela. E apesar das cicatrizes nos braços e nas mãos, seu discurso não carrega rancor.

Algumas pessoas têm o dom de nos fazer rir facilmente. Outras nos fazem pensar no significado da vida. A arte é capaz de unir pessoas com diferentes modos de pensar e de ver o mundo. Nas avenidas, marcado pelo tempo de um semáforo, o encontro platéia-artista carrega em si a magia trazida por esses viajantes que, jogando tudo para o alto, equilibram suas vidas. Mauri, o artista argentino, diz que cada pessoa tem sua arte. Qual é a sua?

Uma resposta para “A arte de equilibrar a vida na ponta da faca

  1. muito bom

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